Ele quase caiu no esquecimento, e agora está ganhando o mundo. Entenda a ciência e as polêmicas por trás desse queijo artesanal.
Na Serra da Canastra, sudoeste mineiro, a força da natureza é uma expressão sólida como o quartzito que forma o chão do lugar. A região abriga tantas nascentes que cientistas definem o lugar como uma gigantesca caixa d’água. A principal delas, aliás, é a do São Francisco, o maior rio totalmente brasileiro. Entre os maciços da Serra da Canastra e o da Serra das Sete Voltas, mais de 200 cachoeiras se misturam a uma vegetação de árvores baixas, marcando a fronteira entre o Cerrado e a Mata Atlântica. O Parque Nacional da Serra da Canastra abriga 354 espécies de aves e 38 de mamíferos. Por planícies e capões passeiam animais silvestres como tatu-canastra, pato-mergulhão, onça-parda, tamanduá-bandeira, lobo-guará, ema e veado-campeiro – todos ameaçados de extinção.
Às margens dos ribeirões, os municípios de São Roque de Minas, Piumhi, Vargem Bonita, Tapiraí, Medeiros, Delfinópolis e Bambuí se destacam pela produção artesanal de queijo. Essas sete cidades formam um circuito em que cerca de 800 famílias não só mantêm viva uma tradição secular como têm mostrado ao Brasil que aqui se faz um dos melhores queijos do mundo.
Os portugueses trouxeram o conhecimento da produção de queijos para o Brasil Colônia. Na região da Canastra, ele chegou há dois séculos. Pouca coisa mudou desde então. Ele é feito de leite cru, em vez de pasteurizado, o que faz toda a diferença. Mas não só: assim como os outros queijos artesanais, o terroir tem um papel fundamental. O termo, famoso no mundo do vinho, também aparece por aqui. Ele se refere às condições ambientais em que um alimento artesanal é feito: o solo, o clima, a fauna bacteriana do lugar.
No caso do queijo mineiro, o pasto que alimenta a vaca determina o teor de proteína e gordura do leite. Já a umidade relativa do ar mais baixa da região serrana ajuda a formar aquela casca durinha e amarelada do canastra. As bactérias e leveduras do ambiente são responsáveis pelo sabor forte e levemente ácido e picante.
Aliás, sem esses microrganismos, o queijo artesanal não seria diferente daquele produzido pela indústria em qualquer lugar do mundo. “As bactérias são a alma do queijo”, diz Renata Golin Bueno Costa, pesquisadora da Empresa de Pesquisa Agropecuária de Minas Gerais (Epamig) – Instituto de Laticínios Cândido Tostes. Para que as bactérias façam seu trabalho, é essencial que a produção aconteça direto do leite tirado da vaca, sem pasteurização. Mas há outras etapas importantes nesse processo.
Nos sítios familiares da serra, quem em geral faz o queijo são as mulheres (leia mais abaixo). Após a coleta e o transporte do leite, o líquido é despejado em um tanque e filtrado. Depois, a produtora adiciona coalho, que contém enzimas que interagem com proteínas do leite chamadas caseínas. A aglomeração de caseínas é o que forma o coágulo, o leite solidificado que vai dar origem ao queijo propriamente dito.
A artesã acrescenta também o fermento lácteo natural, conhecido como “pingo”. Trata-se do soro cheio de bactérias que pingou do queijo de uma produção anterior. Na tradição do canastra, o pingo de ontem é usado no queijo de hoje. Para cada 100 litros de leite vai meio litro de pingo.
Esse processo dura entre 40 e 50 minutos, até que o produto atinja o chamado ponto de corte. A mulher bate na massa lentamente com uma pá e a deixa descansando por 15 minutos. Em seguida, retira o excesso de soro (que será usado para alimentação de animais) e coloca a massa nas formas.
A etapa seguinte envolve a salga. O sal grosso deve ficar na superfície por seis horas em cada lado. O papel dele é fundamental por causa do seguinte: quanto mais água no queijo, mais bactérias. Menos água, menos microrganismos. Ao controlar a quantidade de sal, você determina a população de bactérias. E é essa fauna, como dissemos antes, que vai determinar o gosto e a textura do seu queijo.
O sal dá início ao processo de cura. A palavra “cura” vem de “curar” mesmo, no sentido de curar-se de um machucado. Consiste em exterminar as bactérias do queijo, de modo que ele não estrague tão rápido – quando não havia geladeira, a cura era o único método de conservação, inclusive para carnes.
Em 2017, a Canastra levou três pratas no Salão Internacional do Queijo, na França.
Durante a cura, o número de bactérias e leveduras dentro do queijo baixa de 1 bilhão de “indivíduos” por grama para 10 milhões. Ao longo do processo, as bactérias vão consumindo o açúcar do leite. Conforme esse açúcar vai acabando, as bichinhas vão morrendo. E isso é ótimo: evita que o queijo estrague e, de quebra, dá mais sabor. É que a morte dos microrganismos (ou seja, o rompimento das células deles) libera substâncias que reforçam o aroma e o sabor. É como se o queijo fosse um cemitério de bactérias.
A partir da primeira semana de envelhecimento, o queijo enrijece de fora para dentro e adquire uma coloração amarelada – eis o “meia cura”: o ponto em que o sabor do queijo está no auge. Quando ele passa de um mês nesse processo, vira um queijo 100% curado – mais duradouro, só que nem tão agradável ao paladar quanto o meia cura. Segundo a legislação de Minas Gerais, o canastra deve ser submetido a um período de, no mínimo, 22 dias de maturação para que os fabricantes possam vendê-lo. Antes desses 22 dias, há risco de que o queijo ainda apresente bactérias que causam doenças.